sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Mais de 500 mil pessoas foram mortas no Brasil entre 1997 e 2007 O extermínio da população negra.


1 branco é morto no País para cada 2 negros

Mapa da Violência mostra que, em 2008, morreram 103% mais negros assassinados no Brasil; crimes contra eles não param de crescer


No Brasil, em cada três assassinatos, dois são de negros. Em 2008, morreram 103% mais negros que brancos. Dez anos antes, essa diferença já existia, mas era de 20%. Esses números estão no Mapa da Violência 2011, um estudo nacional que será apresentado hoje pelo pesquisador Julio Jacobo Waiselfisz.
Os números mostram que, enquanto os assassinatos de brancos vêm caindo, os de negros continuam a subir. De 2005 para 2008, houve uma queda de 22,7% nos homicídios de pessoas brancas; entre os negros, as taxas subiram 12,1%.
O cenário é ainda pior entre os jovens (15 a 24 anos). Entre os brancos, o número de homicídios caiu de 6.592 para 4.582 entre 2002 e 2008, uma diferença de 30%. Enquanto isso, os assassinatos entre os jovens negros passaram de 11.308 para 12.749 - aumento de 13%. Em 2008, morriam proporcionalmente mais 127,6% jovens negros que brancos. Dez anos antes, essa diferença era de 39%.
Paraíba. Os dados são mais impressionantes quando se analisam números de alguns Estados. Na Paraíba, em 2008, morreram 1.083% mais negros do que brancos. Em Alagoas, no mesmo ano, foram 974,8% mais mortes de negros. Em 11 Estados, esse índice ultrapassa 200%. As diferenças são pequenas apenas nos Estados onde a população negra também é menor, como no Rio Grande do Sul, onde a diferença é de 12,5%; Santa Catarina, com 14,7%; e Acre, com 4%.
O Mapa da Violência 2011 mostra que apenas no Paraná morrem mais brancos do que negros, com uma diferença de 34,7%. Na população jovem, o campeão é Alagoas. Em 2008, morreram 1.304 % mais negros que brancos. Na Bahia, onde se concentra a maior população preta e parda do País, a diferença foi de 798,5%.
Pobres. "Alguns Estados têm taxas insuportáveis. Não é uma situação premeditada, mas tem as características de um extermínio", disse Waiselfisz, em entrevista ontem ao Estado. "A distância entre brancos e negros cresce muito rápido", ressalta.
O pesquisador credita essa diferença à falta de segurança que envolve a população mais pobre, em que os negros são maioria. "O que acontece com a segurança pública é o que já aconteceu com outros setores, como educação, saúde, previdência social: a privatização. Quem pode paga a segurança privada. Os negros estão entre os mais pobres, moram em zonas de risco e não podem pagar."
PARA ENTENDER
O Mapa da Violência utiliza o sistema de classificação de cor adotado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para simplificação, negro passou a ser adotado tanto para os que se declaram pretos quanto para os pardos. O sistema só incluiu a informação em 2002, quando 92% dos óbitos já relacionavam a cor da vítima.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Urgente: massacre e revolução na Líbia

Os relatos provenientes da Líbia são impressionantes. O regime de Gaddafi está perpetrando um massacre cruel sobre a insurreição da massa. Os mercenários recrutados pelo regime de Gaddafi (o equivalente aos ‘baltagi’ do regime de Mubarak), ao lado do exército regular e as forças de segurança, abriram fogo contra o povo líbio desarmado, ou, em alguns casos, armados apenas com armas de fogo muito leves. As forças repressivas do regime não apenas usam armas de fogo, mas também de artilharia, tanques, aviões e helicópteros de combate. Do ponto de vista militar, esta não pode ser considerada uma guerra. Aliás, esse é um massacre conduzido pelo regime de Gaddafi sob a supervisão das potências imperialistas da Europa e dos Estados Unidos que, como sempre, só se preocupam com petróleo e dinheiro, apenas para o lucro, e não os direitos humanos ou até mesmo vidas humanas.
O governo Europeu e estadunidense estão mantendo um silêncio vergonhoso, que diz mais do que qualquer possível declaração. No fundo eles estão apoiando os assassinos, a ditadura, contra a rebelião em massa, como fizeram na Tunísia e no Egito, para em seguida mudar de lado quando o triunfo da revolução torna-se inevitável. E não há nenhum segredo nisto. Trata-se apenas de todo o petróleo e dinheiro que deve permanecer nas mãos de ditadores, e não dos povos. E, como aconteceu antes no Bahrein, Tunísia e Egito, a maioria das armas antidistúrbio e sua munição usada pelas forças do regime para assassinar e reprimir o povo, são provenientes de empresas européias e estadunidenses. Duas noites atrás, o filho do ditador líbio ameaçou as massas e ontem seus assassinos e mercenários passaram de ameaça à ação. A ditadura de Gaddafi na Líbia é um exemplo perfeito de um regime totalitário, como aquela sociedade opressiva descrita por George Orwell, em seu romance "1984". Agora, o "Grande Irmão" tem travado uma verdadeira guerra contra o seu próprio povo, ou mais precisamente, guiando uma matança sangrenta contra os líbios em rebelião. Mais uma vez, estão apelando para o "fantasma" dos fundamentalistas. Esta não é uma luta entre os fundamentalistas e o regime; a luta está sendo travada entre as massas e a ditadura.
Isto é simplesmente uma escandalosa manipulação da realidade; uma tentativa descarada de justificar não só a repressão do regime, mas também os seus crimes bárbaros, quando a verdade é que nada, absolutamente nada, pode justificar os crimes do regime de Gaddafi, como o uso de tanques e aviões de combate contra as massas desarmadas, contra as crianças e suas mães.
Nós, os anarquistas e libertários, não devemos descartar a possibilidade de alguma força repressiva (islâmica ou não) se apropriar da revolução. Mas diante disso, não preferimos uma força de repressão não religiosa a uma religiosa. Optamos pela verdadeira liberdade das massas, por uma sociedade autogerida e organizada de forma livre e voluntária, de baixo para cima. Diante deste cenário, vemos que a única resposta apropriada é a ação direta popular desenvolvida pelas massas, e não para qualquer outro tipo de repressão brutal exercida por uma ditadura feroz.
Aqui estão algumas notícias e comentários do blog de um companheiro anarquista líbio (apenas em árabe). O link para o blog é: http://saoudsalem.maktoobblog.com  
Centenas de pessoas assassinadas na Líbia - Gaddafi, o açougueiro, escondido em sua fortaleza.
Testemunhas relataram o fato de que um verdadeiro massacre acontece na cidade de Benghazi, no leste da Líbia, onde dezenas de pessoas foram mortas e centenas feridas. E os hospitais da cidade estão sobrecarregados com pessoas feridas. Um advogado e ativista declarou à Al Jazeera que o número de pessoas assassinadas pelas forças de segurança em Benghazi pode aumentar para 200 e entre 800 e 900 feridos (escrito em 20 de fevereiro).
Gaddafi bombardeou os líbios... e os líbios estão  avançando para Trípoli.
Benghazi, segunda maior cidade da Líbia, a mais importante depois da capital Trípoli - onde a primeira centelha da revolta ocorreu em fevereiro - está enfrentando um genocídio (escrito em 20 de fevereiro).
A família governante (ou seja, a família Gaddafi) na Líbia, perdeu a paciência e chamou os manifestantes de "bandidos".
Parece que o abuso de poder por parte do regime e seu massacre contra os manifestantes saiu pela culatra, tanto que até mesmo muitos membros das forças armadas e da polícia se recusaram a disparar contra os manifestantes e se uniram a eles, forçando o regime de Gaddafi a recrutar mercenários de países pobres da África (escrito em 21 de fevereiro).
Mazen Kamalmaz
Anarquista sírio.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Trovão, o herói podre da mídia

O massacre da favela do Alemão, no Rio de Janeiro, aconteceu em junho de 2007. Foi o resultado de uma operação coordenada entre a Força Nacional de Segurança e as polícias estaduais que deixou pelo menos 19 mortos.

Na época, a grande mídia só fez elogios. E elegeu até um herói para simbolizar a operação. Era
o inspetor Leonardo da Silva Torres. Mais conhecido como “Trovão”. Ele aparece na capa da revista Época, de 29 de junho. Leva num braço o fuzil e na mão um charuto. Atrás dele, três corpos estendidos. Sob o título “Um ataque inovador”, a legenda explica que ele:
“...encarna não só a batalha no Alemão, mas a força policial inovadora que hoje combate nos morros. Formado pela Swat americana e pelo Centro de Inteligência da Marinha Brasileira, Torres integrou a patrulha avançada de ocupação do Alemão. Seu uniforme de campanha e o charuto que mantém aceso mesmo em serviço deram uma cara nova aos agentes da invasão. Mais que isso, eles fizeram de Trovão alguém com quem a população pode se identificar”.

Agora, em fevereiro de 2011, Trovão volta a aparecer nos jornais. Eis um trecho de matéria do Extra de 12/02:

Integrado por cinco policiais e um informante, o grupo de policiais chefiado pelo inspetor Leonardo da Silva Torres, o Trovão, é apontado pela PF como responsável pela venda de pistolas, metralhadoras e fuzis apreendidos em operações policiais para os traficantes Rogério Rios Mosqueira, o Roupinol e Antonio Francisco Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha. De acordo com a investigação, os policiais são acusados ainda de receber do tráfico uma propina mensal de R$ 100 mil.

Trovão não é nenhum herói. Além de carniceiro, se mostrou corrupto. A grande imprensa deveria se explicar. Não vai fazê-lo. Vai continuar a elogiar ações militarizadas e violentas contra a população pobre, como está fazendo com as UPPs.

Mais detalhes: O Iraque é aqui

Sérgio Domingues
http://pilulas-diarias.blogspot.com

domingo, 20 de fevereiro de 2011

A primavera árabe se espalha

De onde o continente africano encontra o oceano Atlântico, no Marrocos, cruzando a extensão dos mares Mediterrâneo e Vermelho, englobando a península arábica para atravessar o golfo Pérsico até os limites da Ásia, no Irã, mais de 300 milhões de pessoas vivem em uma região sob ameaça de convulsão social decorrente de eventos que podem representar a maior redistribuição de forças no tabuleiro geopolítico global desde o fim do comunismo no Leste Europeu. A expressão barril de pólvora nunca fez tanto sentido. O artigo é de Wilson Sobrinho.

A Primavera Árabe, como parte da imprensa tem se referido aos acontecimentos iniciados em dezembro na Tunísia e que na metade de fevereiro derrubaram o governo do Egito, transformou-se em uma rebelião tão grande que agora já transborda os limites daquele que é um dos verdadeiros parâmetros de grandeza do planeta Terra, o deserto do Saara.

De onde o continente africano encontra o oceano Atlântico, no Marrocos, cruzando a extensão dos mares Mediterrâneo e Vermelho, englobando a península arábica para atravessar o golfo Pérsico até os limites da Ásia, no Irã, mais de 300 milhões de pessoas vivem em uma região sob ameaça de convulsão social decorrente de eventos que podem representar a maior redistribuição de forças no tabuleiro geopolítico global desde o fim do comunismo no Leste Europeu. A expressão barril de pólvora nunca fez tanto sentido.

Argélia – Os argelinos primeiro foram as ruas para protestar contra a alta no preço dos alimentos em janeiro último. Os confrontos deixaram um saldo de 5 mortos e 800 feridos. No sábado (12/02) depois da queda do governo egípcio, mais protestos foram convocados pela oposição. Duas mil pessoas compareceram às ruas da capital Argel. 30 mil soldados os esperavam. Relatos dão conta de que 350 pessoas foram presas na ocasião. Mais protestos estão programados para este final de semana, apesar do estado de emergência, em vigor desde 1992, que proíbe manifestações públicas no país. Na segunda cidade da Argélia, Orã, por exemplo, as autoridades deram permissão para manifestações, contanto que aconteçam em locais fechado.

A dissolução da lei de emergência e a saída do presidente Abdelaziz Bouteflika são algumas das bandeiras dos manifestantes. Bouteflika, que está no poder desde 1999 e recentemente alterou a regra que limitava o número de vezes que pode concorrer à reeleição, anunciou que deverá revogar a lei de emergência em semanas. Nos anos 1990, uma guerra civil ceifou entre 150 e 200 mil vidas no país.

Arábia Saudita – Parcos foram os eventos até agora no país que guarda em seu subsolo um quinto das reservas de petróleo do mundo e que é o alicerce maior dos EUA no Oriente Médio. E poucos acreditam que o pavio saudita possa ser acesso, mas diante de tanta instabilidade ninguém ficará surpreso caso isso aconteça.

Neste sábado (19/02), membros da minoria xiitas do país teriam organizado uma manifestação pacífica e silenciosa em apoio aos seus pares de Bahrein, relata a agência Reuters.

Bahrein – As manifestações começaram no dia 14 de fevereiro, três dias depois da queda de Cairo. Quatro pessoas morreram quando as forças do governo tentavam retirar manifestantes da praça Pérola, na quinta-feira (17/02), em Manama, a capital dessa ilha do golfo Pérsico que abriga a Quinta Frota da marinha dos EUA. No enterro dos mortos, mais violência resultou em pelo menos 50 feridos. O governo, que primeiro pediu que os manifestantes abandonassem as ruas, passou chamar o diálogo, rejeitado pelas forças de oposição sob o argumento de que não há conversa possível com o exército nas ruas.

Com 1,2 milhões de habitantes apenas, essa ilha do golfo Pérsico espremida entre o Catar e a Arábia Saudita está longe de ser a mais desimportante das repúblicas em convulsão. Analistas alertam que Bahrein pode representar a porta de entrada da Arábia Saudita na crise. Já que as demandas da maioria xiita do país são semelhantes a dos xiitas árabes, minoria concentrada na região leste do país.

Egito – Uma semana depois da queda de Hosni Mubarak – o mais espetacular dos eventos alcançados pelos manifestantes nessa onda de revolta árabe até o momento – milhares de pessoas voltaram à praça Tahrir para celebrar o feito. Mas a manifestação pode ser compreendida também como um sinal de alerta às forças armadas que tomaram o poder depois da saída de Mubarak. Depois de derrubar um regime de 30 anos, em 18 dias de protestos, os egípcios sabem que sua revolução ainda não terminou até que o poder provisório dê lugar a um com regras bem claras e estabelecidas.

Iêmen – no sul da península arábica, esse país tem, segundo a revista britânica The Economist, o maior potencial para ruptura social entre todos os envolvidos na revolta até agora. Há 32 anos no poder, Ali Abdullah Saleh anunciou em início de fevereiro que não irá buscar um novo mandato em 2013, nem irá apontar seu filho como herdeiro político. O comprometimento veio depois de uma manifestação que levou 16 mil pessoas às ruas da capital, Sana, pedindo a queda do governo.

No dia seguinte ao anúncio, 20 mil pessoas voltaram às ruas da capital e de outras cidades para reforçar o pedido de fim do regime. Depois da queda de Mubarak, no Egito, manifestações diárias vem acontecendo no Iêmen. A maior delas, na sexta-feira, 18, quando milhares de manifestantes antigoverno foram às ruas da capital. Reprimidos pelo exército e por ativistas pró-governo, que chegaram a atirar uma granada em um grupo de pessoas, a contagem de mortos entre os manifestantes já chega a 12.

Irã – Embora aplauda o levante popular em outras partes do mundo islâmico, Teerã – que divide com a Líbia o posto de maior inimigo dos EUA na região – não quer que o mesmo aconteça em seu território. Por outro lado, a oposição pretende aproveitar a onda de rebeldia para recobrar forças e voltar a desafiar o governo de Mahmoud Ahmadinejad.

Dois manifestantes foram mortos na segunda-feira, dia 14, na capital, em confrontos envolvendo grupos de oposição e forças do governo. Como resposta, a oposição está chamando para domingo, dia 20, uma manifestação contra o governo, que por sua vez colocou os líderes oposicionistas em prisão domiciliar.

Jordânia – Outro país onde as manifestações começaram em janeiro, fomentadas por altas nos preços de comida e energia. Em 28 de janeiro, 3,5 mil ativistas tomaram as ruas da capital, Amã, exigindo a saída do primeiro-ministro e uma ação mais forte do governo em relação ao desemprego e a alta do custo de vida. O rei Abdullah II foi rápido ao intervir e a dissolução do governo foi anunciada em começo de fevereiro. As manifestações seguiram, agora com a oposição pedindo reformas políticas e democracia.

O único confronto registrado até agora na Jordânia aconteceu na sexta-feira, 18 de fevereiro, quando um grupo de manifestantes favoráveis ao governo atacou os oposicionistas com paus e pedras, até a polícia intervir.

Líbia – Excluindo-se o rei da Tailândia e a rainha da Inglaterra, ninguém está no poder há tanto tempo quanto Muammar al-Gaddafi. O homem que comanda a Líbia desde o fim dos anos 1960 viu a revolta oposicionista ser incensada pelos eventos do Egito e da Tunísia. Desde o dia 15 de fevereiro, terça-feira, as manifestações contra Gaddafi são diárias no país principalmente na cidade de Bengasi, a segunda maior do país. Segundo agências internacionais, mas de 80 pessoas já teriam morrido em confrontos entre manifestantes e forças do governo.

Em Trípoli, porém, não há relatos de grandes protestos até o momento e e o único evento relacionado à crise foi uma resposta de seguidores do governo ao protestos convocados pela oposição. Há relatos de que o governo teria bloqueado o acesso à internet no país, ou pelo menos a sites como Facebook e Twitter, armas reconhecidas dos oposicionistas em outros países.

Marrocos – Os protestos em massa no país ainda não ganharam as ruas, mas estão prestes a fazê-lo. A oposição está convocando uma manifestação neste domingo (20/02). Organizados via Internet os manifestantes afirmam não ser um movimento antimonarquia e que apenas querem “um governo que represente as pessoas e não a elite”, como descreveu para a Associated Press nessa semana um dos membros do grupo chamado 20 de Fevereiro.

Tunísia – Quando Mohamed Bouazizi colocou fogo em si mesmo, no dia 17 de dezembro de 2010, como um ato de desespero depois de ter suas mercadorias confiscadas pelas autoridades policiais da Tunísia, ele não teria como imaginar o que se seguiria. O ato do jovem vendedor de rua serviu de gatilho para a Primavera Árabe. Menos de um mês depois, o presidente de mais de 24 anos no comando do país africano havia sido colocado para correr e os portões do inferno haviam sido abertos para todos os déspotas da região.

Mais de 200 pessoas morreram no processo, que ainda não acabou. Apesar da mudança de governo, os manifestantes tunisianos seguem mobilizados para garantir que antigos membros do governo não voltem à cena e que a transição para a democracia ocorra de fato.

(*) Correspondente da Carta Maior em Londres.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Carta Aberta ao Ziraldo, por Ana Maria Gonçalves

Caro Ziraldo,
Olho a triste figura de Monteiro Lobato abraçado a uma mulata, estampada nas camisetas do bloco carnavalesco carioca "Que merda é essa?" e vejo que foi obra sua. Fiquei curiosa para saber se você conhece a opinião de Lobato sobre os mestiços brasileiros e, de verdade, queria que não. Eu te respeitava, Ziraldo. Esperava que fosse o seu senso de humor falando mais alto do que a ignorância dos fatos, e por breves momentos até me senti vingada. Vingada contra o racismo do eugenista Monteiro Lobato que, em carta ao amigo Godofredo Rangel, desabafou: "(...)Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. E vão apinhados como sardinhas e há um desastre por dia, metade não tem braço ou não tem perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. “Que foi?” “Desastre na Central.” Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problema terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!..." (em "A barca de Gleyre". São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. p.133).



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Ironia das ironias, Ziraldo, o nome do livro de onde foi tirado o trecho acima é inspirado em um quadro do pintor suíço Charles Gleyre (1808-1874), Ilusões Perdidas. Porque foi isso que aconteceu. Porque lendo uma matéria sobre o bloco e a sua participação, você assim o endossa : "Para acabar com a polêmica, coloquei o Monteiro Lobato sambando com uma mulata. Ele tem um conto sobre uma neguinha que é uma maravilha. Racismo tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo. A ideia é acabar com essa brincadeira de achar que a gente é racista". A gente quem, Ziraldo? Para quem você se (auto) justifica? Quem te disse que racismo sem ódio, mesmo aquele com o "humor negro" de unir uma mulata a quem grande ódio teve por ela e pelo que ela representava, não é racismo? Monteiro Lobato, sempre que se referiu a negros e mulatos, foi com ódio, com desprezo, com a certeza absoluta da própria superioridade, fazendo uso do dom que lhe foi dado e pelo qual é admirado e defendido até hoje. Em uma das cartas que iam e vinham na barca de Gleyre (nem todas estão publicadas no livro, pois a seleção foi feita por Lobato, que as censurou, claro) com seu amigo Godofredo Rangel, Lobato confessou que sabia que a escrita "é um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil, 'work' muito mais eficientemente".
Lobato estava certo. Certíssimo. Até hoje, muitos dos que o leram não vêem nada de errado em seu processo de chamar negro de burro aqui, de fedorento ali, de macaco acolá, de urubu mais além. Porque os processos indiretos, ou seja, sem ódio, fazendo-se passar por gente boa e amiga das crianças e do Brasil, "work" muito bem. Lobato ficou frustradíssimo quando seu "processo" sem ódio, só na inteligência, não funcionou com os norte-americanos, quando ele tentou em vão encontrar editora que publicasse o que considerava ser sua obra prima em favor da eugenia e da eliminação, via esterilização, de todos os negros. Ele falava do livro "O presidente negro ou O choque das raças" que, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos, país daquele povo que odeia negros, como você diz, Ziraldo, foi publicado no Brasil. Primeiro em capítulos no jornal carioca A Manhã, do qual Lobato era colaborador, e logo em seguida em edição da Editora Companhia Nacional, pertencente a Lobato. Tal livro foi dedicado secretamente ao amigo e médico eugenista Renato Kehl, em meio à vasta e duradoura correspondência trocada pelos dois: “Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. (...) Precisamos lançar, vulgarizar estas idéias. A humanidade precisa de uma coisa só: póda. É como a vinha".
Impossibilitado de colher os frutos dessa poda nos EUA, Lobato desabafou com Godofredo Rangel: "Meu romance não encontra editor. [...]. Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros." Tempos depois, voltou a se animar: "Um escândalo literário equivale no mínimo a 2.000.000 dólares para o autor (...) Esse ovo de escândalo foi recusado por cinco editores conservadores e amigos de obras bem comportadas, mas acaba de encher de entusiasmo um editor judeu que quer que eu o refaça e ponha mais matéria de exasperação. Penso como ele e estou com idéias de enxertar um capítulo no qual conte a guerra donde resultou a conquista pelos Estados Unidos do México e toda essa infecção spanish da América Central. O meu judeu acha que com isso até uma proibição policial obteremos - o que vale um milhão de dólares. Um livro proibido aqui sai na Inglaterra e entra boothegued como o whisky e outras implicâncias dos puritanos". Lobato percebeu, Ziraldo, que talvez devesse apenas exasperar-se mais, ser mais claro em suas ideias, explicar melhor seu ódio e seu racismo, não importando a quem atingiria e nem por quanto tempo perduraria, e nem o quão fundo se instalaria na sociedade brasileira. Importava o dinheiro, não a exasperação dos ofendidos. 2.000.000 de dólares, ele pensava, por um ovo de escândalo. Como também foi por dinheiro que o Jeca Tatu, reabilitado, estampou as propagandas do Biotônico Fontoura.
Você sabe que isso dá dinheiro, Ziraldo, mesmo que o investimento tenha sido a longo prazo, como ironiza Ivan Lessa: "Ziraldo, o guerrilheiro do traço, está de parabéns. Finalmente o governo brasileiro tomou vergonha na cara e acabou de pagar o que devia pelo passe de Jeremias, o Bom, imortal personagem criado por aquele que também é conhecido como “o Lamarca do nanquim”. Depois do imenso sucesso do calunguinha nas páginas de diversas publicações, assim como também na venda de diversos produtos farmacêuticos, principalmente doenças da tireóide, nos idos de 70, Ziraldo, cognominado ainda nos meios esclarecidos como “o subversivo da caneta Pilot”, houve por bem (como Brutus, Ziraldo é um homem de bem; são todos uns homens de bem – e de bens também) vender a imagem de Jeremias para a loteca, ou seja, para a Caixa Econômica Federal (federal como em República Federativa do Brasil) durante o governo Médici ou Geisel (os déspotas esclarecidos em muito se assemelham, sendo por isso mesmo intercambiáveis)".
No tempo em que linchavam negros, disse Lobato, como se o linchamento ainda não fosse desse nosso tempo. Lincham-se negros nas ruas, nas portas dos shoppings e bancos, nas escolas de todos os níveis de ensino, inclusive o superior. O que é até irônico, porque Lobato nunca poderia imaginar que chegariam lá. Lincham-se negros, sem violência física, é claro, sem ódio, nos livros, nos artigos de jornais e revistas, nos cartoons e nas redes sociais, há muitos e muitos carnavais. Racismo não nasce do ódio ou amor, Ziraldo, sendo talvez a causa e não a consequência da presença daquele ou da ausência desse. Racismo nasce da relação de poder. De poder ter influência ou gerência sobre as vidas de quem é considerado inferior. "Em que estado voltaremos, Rangel," se pergunta Lobato, ao se lembrar do quadro para justificar a escolha do nome do livro de cartas trocadas, "desta nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho de Gleyre? Cansados, rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca – e não ficou nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de velas novas e arrogantes, atadas ao mastro da nossa petulância. São as nossas ilusões". Ah, Ziraldo, quanta ilusão (ou seria petulância? arrogância; talvez? sensação de poder?) achar que impor à mulata a presença de Lobato nessa festa tipicamente negra, vá acabar com a polêmica e todos poderemos soltar as ancas e cada um que sambe como sabe e pode. Sem censura. Ou com censura, como querem os quemerdenses. Mesmo que nesse do Caçadas de Pedrinho a palavra censura não corresponda à verdade, servindo como mero pretexto para manifestação de discordância política, sem se importar com a carnavalização de um tema tão dolorido e tão caro a milhares de brasileiros. E o que torna tudo ainda mais apelativo é que o bloco aponta censura onde não existe e se submete, calado, ao pedido da prefeitura para que não use o próprio nome no desfile. Não foi assim? Você não teve que escrever "M*" porque a palavra "merda" foi censurada? Como é que se explica isso, Ziraldo? Mente-se e cala-se quando convém? Coerência é uma questão de caráter.
ziraldo_direitos_humanos.jpgO que o MEC solicita não é censura. É respeito aos Direitos Humanos. Ao direito de uma criança negra em uma sala de aula do ensino básico e público, não se ver representada (sim, porque os processos indiretos, como Lobato nos ensinou, "work" muito mais eficientemente) em personagens chamados de macacos, fedidos, burros, feios e outras indiretas mais. Você conhece os direitos humanos, inclusive foi o artista escolhido para ilustrar a Cartilha de Direitos Humanos encomendada pela Presidência da República, pelas secretarias Especial de Direitos Humanos e de Promoção dos Direitos Humanos, pela ONU, a UNESCO, pelo MEC e por vários outros órgãos. Muitos dos quais você agora desrespeita ao querer, com a sua ilustração, acabar de vez com a polêmica causada por gente que estudou e trabalhou com seriedade as questões de educação e desigualdade racial no Brasil. A adoção do Caçadas de Pedrinho vai contra a lei de Igualdade Racial e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que você conhece e ilustrou tão bem. Na página 25 da sua Cartilha de Direitos Humanos, está escrito: "O único jeito de uma sociedade melhorar é caprichar nas suas crianças. Por isso, crianças e adolescentes têm prioridade em tudo que a sociedade faz para garantir os direitos humanos. Devem ser colocados a salvo de tudo que é violência e abuso. É como se os direitos humanos formassem um ninho para as crianças crescerem." Está lá, Ziraldo, leia de novo: "crianças e adolescentes têm prioridade". Em tudo. Principalmente em situações nas quais são desrespeitadas, como na leitura de um livro com passagens racistas, escrito por um escritor racista com finalidades racistas. Mas você não vê racismo e chama de patrulhamento do politicamente correto e censura. Você está pensando nas crianças, Ziraldo? Ou com medo de que, se a moda pega, a "censura" chegue ao seu direito de continuar brincando com o assunto? "Acho injusto fazer isso com uma figura da grandeza de Lobato", você disse em uma reportagem. E com as crianças, o público-alvo que você divide com Lobato, você acha justo? Sim, vocês dividem o mesmo público e, inclusive, alguns personagens, como uma boneca e pano e o Saci, da sua Turma do Pererê. Medo de censura, Ziraldo, talvez aos deslizes, chamemos assim, que podem ser cometidos apenas porque se acostuma a eles, a ponto de pensar que não são, de novo chamemos assim, deslizes.
A gente se acostuma, Ziraldo. Como o seu menino marrom se acostumou com as sandálias de dedo: "O menino marrom estava tão acostumado com aquelas sandálias que era capaz de jogar futebol com elas, apostar corridas, saltar obstáculos sem que as sandálias desgrudassem de seus pés. Vai ver, elas já faziam parte dele" (ZIRALDO, 1986,p. 06, em O Menino Marrom). O menino marrom, embora seja a figura simpática e esperta e bonita que você descreve, estava acostumado e fadado a ser pé-de-chinelo, em comparação ao seu amigo menino cor-de-rosa, porque "(...) um já está quase formado e o outro não estuda mais (...). Um já conseguiu um emprego, o outro foi despedido do quinto que conseguiu. Um passa seus dias lendo (...), um não lê coisa alguma, deixa tudo pra depois (...). Um pode ser diplomata ou chofer de caminhão. O outro vai ser poeta ou viver na contramão (...). Um adora um som moderno e o outro – Como é que pode? – se amarra é num pagode. (...) Um é um cara ótimo e o outro, sem qualquer duvida, é um sujeito muito bom. Um já não é mais rosado e o outro está mais marrom" (ZIRALDO, 1986, p.31). O menino marrom, ao crescer, talvez virasse marginal, fado de muito negro, como você nos mostra aqui: "(...) o menino cor-de-rosa resolveu perguntar: por que você vem todo o dia ver a velhinha atravessar a rua? E o menino marrom respondeu: Eu quero ver ela ser atropelada" (ZIRALDO, 1986, p.24), porque a própria professora tinha ensinado para ele a diferença e a (não) mistura das cores. Então ele pensou que "Ficar sozinho, às vezes, é bom: você começa a refletir, a pensar muito e consegue descobrir coisas lindas. Nessa de saber de cor e de luz (...) o menino marrom começou a entender porque é que o branco dava uma idéia de paz, de pureza e de alegria. E porque razão o preto simbolizava a angústia, a solidão, a tristeza. Ele pensava: o preto é a escuridão, o olho fechado; você não vê nada. O branco é o olho aberto, é a luz!" (ZIRALDO, 1986, p.29), e que deveria se conformar com isso e não se revoltar, não ter ódio nenhum ao ser ensinado que, daquela beleza, pureza e alegria que havia na cor branca, ele não tinha nada. O seu texto nos ensina que é assim, sem ódio, que se doma e se educa para que cada um saiba o seu lugar, com docilidade e resignação: "Meu querido amigo: Eu andava muito triste ultimamente, pois estava sentindo muito sua falta. Agora estou mais contente porque acabo de descobrir uma coisa importante: preto é, apenas, a ausência do branco" (ZIRALDO, 1986, p.30).
Olha que interessante, Ziraldo: nós que sabemos do racismo confesso de Lobato e conseguimos vê-lo em sua obra, somos acusados por você de "macaquear" (olha o termo aí) os Estados Unidos, vendo racismo em tudo. "Macaqueando" um pouco mais, será que eu poderia também acusá-lo de estar "macaqueando" Lobato, em trechos como os citados acima? Sem saber, é claro, mas como fruto da introjeção de um "processo" que ele provou que "work" com grande eficiência e ao qual podemos estar todos sujeitos, depois de sermos submetidos a ele na infância e crescermos em uma sociedade na qual não é combatido. Afinal, há quem diga que não somos racistas. Que quem vê o racismo, na maioria os negros, que o sofrem, estão apenas "macaqueando". Deveriam ficar calados e deixar dessa bobagem. Deveriam se inspirar no menino marrom e se resignarem. Como não fazem muitos meninos e meninas pretos e marrons, aqueles que são a ausência do branco, que se chateiam, que se ofendem, que sofrem preconceito nas ruas e nas escolas e ficam doídos, pensando nisso o tempo inteiro, pensando tanto nisso que perdem a vontade de ir à escola, começam a tirar notas baixas porque ficam matutando, ressentindo, a atenção guardadinha lá debaixo da dor. E como chegam à conclusão de que aquilo não vai mudar, que não vão dar em nada mesmo, que serão sempre pés-de-chinelo, saem por aí especializando-se na arte de esperar pelo atropelamento de velhinhas.
Racismo é um dos principais fatores responsáveis pela limitada participação do negro no sistema escolar, Ziraldo, porque desvia o foco, porque baixa a auto-estima, porque desvia o foco das atividades, porque a criança fica o tempo todo tendo que pensar em como não sofrer mais humilhações, e o material didático, em muitos casos, não facilita nada a vida delas. E quando alguma dessas crianças encontra um jeito de fugir a esse destino, mesmo que não tenha sido através da educação, fica insuportável e merece o linchamento público e exemplar, como o sofrido por Wilson Simonal. Como exemplo, temos a sua opinião sobre ele: "Era tolo, se achava o rei da cocada preta, coitado. E era mesmo. Era metido, insuportável". Sabe, Ziraldo, é por causa da perpetuação de estereótipos como esses que às vezes a gente nem percebe que eles estão ali, reproduzidos a partir de preconceitos adquiridos na infância, que a SEPPIR pediu que o MEC reavaliasse a adoção de Caçadas de Pedrinho. Não a censura, mas a reavaliação. Uma nota, talvez, para ser colocada junto com as outras notas que já estão lá para proteger os direitos das onças de não serem caçadas e o da ortografia, de evoluir. Já estão lá no livro essas duas notas e a SEPPIR pede mais uma apenas, para que as crianças e os adolescentes sejam "colocados a salvo de tudo que é violência e abuso", como está na cartilha que você ilustrou. Isso é um direito delas, como seres humanos. É por isso que tem gente lutando, como você também já lutou por direitos humanos e por reparação. É isso que a SEPPIR pede: reparação pelos danos causados pela escravidão e pelo racismo.
Assim você se defendeu de quem o atacou na época em que conseguiu fazer valer os seus direitos: "(…) Espero apenas que os leitores (que o criticam) não tenham sua casa invadida e, diante de seus filhos, sejam seqüestrados por componentes do exército brasileiro pelo fato de exercerem o direito de emitir sua corajosa opinião a meu respeito, eu, uma figura tão poderosa”. Ziraldo, você tem noção do que aconteceu com os, citando Lobato, "negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão", e do que acontece todos os dias com seus descendentes em um país que naturalizou e, paradoxalmente, nega o seu racismo? De quantos já morreram e ainda morrem todos os dias porque tem gente que não os leva a sério? Por causa do racismo é bem difícil que essa gente fadada a ser pé-de-chinelo a vida inteira, essas pessoas dos subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal, - porque nelas está a ausência do branco, esse povo todo representado pela mulata dócil que você faz sorrir nos braços de um dos escritores mais racistas e perversos e interesseiros que o Brasil já teve, aquele que soube como ninguém que um país (racista) também de faz de homens e livros (racistas), por causa disso tudo, Ziraldo, é que eu ia dizendo ser quase impossível para essa gente marrom, herdeira dessa gente de cor que simboliza a angústia, a solidão, a tristeza, gerar pessoas tão importantes quanto você, dignas da reparação (que nem é financeira, no caso) que o Brasil também lhes deve: respeito. Respeito que precisou ser ancorado em lei para que tivesse validade, e cuja aplicação você chama de censura.menino-lendo.jpg
Junto com outros grandes nomes da literatura infantil brasileira, como Ana Maria Machado e Ruth Rocha, você assinou uma carta que, em defesa de Lobato e contra a censura inventada pela imprensa, diz: "Suas criações têm formado, ao longo dos anos, gerações e gerações dos melhores escritores deste país que, a partir da leitura de suas obras, viram despertar sua vocação e sentiram-se destinados, cada um a seu modo, a repetir seu destino. (...) A maravilhosa obra de Monteiro Lobato faz parte do patrimônio cultural de todos nós – crianças, adultos, alunos, professores – brasileiros de todos os credos e raças. Nenhum de nós, nem os mais vividos, têm conhecimento de que os livros de Lobato nos tenham tornado pessoas desagregadas, intolerantes ou racistas. Pelo contrário: com ele aprendemos a amar imensamente este país e a alimentar esperança em seu futuro. Ela inaugura, nos albores do século passado, nossa confiança nos destinos do Brasil e é um dos pilares das nossas melhores conquistas culturais e sociais." É isso. Nos livros de Lobato está o racismo do racista, que ninguém vê, que vocês acham que não é problema, que é alicerce, que é necessário à formação das nossas futuras gerações, do nosso futuro. E é exatamente isso. Alicerce de uma sociedade que traz o racismo tão arraigado em sua formação que não consegue manter a necessária distância do foco, a necessário distância para enxergá-lo. Perpetuar isso parece ser patriótico, esse racismo que "faz parte do patrimônio cultural de todos nós – crianças, adultos, alunos, professores – brasileiros de todos os credos e raças." Sabe o que Lobato disse em carta ao seu amigo Poti, nos albores do século passado, em 1905? Ele chamava de patriota o brasileiro que se casasse com uma italiana ou alemã, para apurar esse povo, para acabar com essa raça degenerada que você, em sua ilustração, lhe entrega de braços abertos e sorridente. Perpetuar isso parece alimentar posições de pessoas que, mesmo não sendo ou mesmo não se achando racistas, não se percebem cometendo a atitude racista que você ilustrou tão bem: entregar essas crianças negras nos braços de quem nem queria que elas nascessem. Cada um a seu modo, a repetir seu destino. Quem é poderoso, que cobre, muito bem cobrado, seus direitos; quem não é, que sorria, entre na roda e aprenda a sambar.
Peguei-o para bode expiatório, Ziraldo? Sim, sempre tem que ter algum. E, sem ódio, espero que você não queira que eu morra por te criticar. Como faziam os racistas nos tempos em quem ainda linchavam negros. Esses abusados que não mais se calam e apelam para a lei ao serem chamados de "macaco", "carvão", "fedorento", "ladrão", "vagabundo", "coisa", "burro", e que agora querem ser tratados como gente, no concerto dos povos. Esses que, ao denunciarem e quererem se livrar do que lhes dói, tantos problemas criam aqui, nesse país do futuro. Em uma matéria do Correio Braziliense você disse que "Os americanos odeiam os negros, mas aqui nunca houve uma organização como a Ku Klux Klan. No Brasil, onde branco rico entra, preto rico também entra. Pelé nunca foi alvo de uma manifestação de ódio racial. O racismo brasileiro é de outra natureza. Nós somos afetuosos”. Se dependesse de Monteiro Lobato, o Brasil teria tido sua Ku-Klux-Klan, Ziraldo. Leia só o que ele disse em carta ao amigo Arthur Neiva, enviada de Nova Iorque em 1928, querendo macaquear os brancos norte-americanos: "Diversos amigos me dizem: Por que não escreve suas impressões? E eu respondo: Porque é inútil e seria cair no ridículo. Escrever é aparecer no tablado de um circo muito mambembe, chamado imprensa, e exibir-se diante de uma assistência de moleques feeble-minded e despidos da menos noção de seriedade. Mulatada, em suma. País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan é país perdido para altos destinos. André Siegfred resume numa frase as duas atitudes. "Nós defendemos o front da raça branca - diz o sul - e é graças a nós que os Estados Unidos não se tornaram um segundo Brasil". Um dia se fará justiça ao Kux-Klan; tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca - mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destroem (sic) a capacidade construtiva." Fosse feita a vontade de Lobato, Ziraldo, talvez não tivéssemos a imprensa carioca, talvez não tivéssemos você. Mas temos, porque, como você também diz, "o racismo brasileiro é de outra natureza. Nós somos afetuosos." Como, para acabar com a polêmica, você nos ilustra com o desenho para o bloco quemerdense. Olho para o rosto sorridente da mulata nos braços de Monteiro Lobato e quase posso ouvi-la dizer: "Só dói quando eu rio".
Com pesar, e em retribuição ao seu afeto,
Ana Maria Gonçalves

Negra, escritora, autora de Um defeito de cor.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Resistência contra a remoção da Favela do Metrô (RJ)

No sábado, dia 12 de fevereiro, a equipe de reportagem do A Nova Democracia esteve na favela do Metrô para registrar a denúncia de que o subprefeito da zona Norte do Rio de Janeiro, André Santos, estava na comunidade acompanhado da Polícia Militar, Guarda Municipal e de tratores da prefeitura, prontos para a derrubada de alguns barracos de moradores que foram sorteados com prédios nas proximidades da Mangueira. A ação foi feita contra a vontade da maioria da população da comunidade que não quer sair do local.
Como a resistência dos moradores foi forte e organizada, a prefeitura, que antes tentava amedrontar a população dizendo que todos iriam para Cosmos querendo ou não, agora se vê obrigada a sortear apartamentos para concretizar seus sinistros planos em nome da especulação imobiliária, pois a comunidade fica próxima ao Maracanã, estádio em que será realizado o jogo final da Copa do Mundo que acontecerá no Brasil. Por exigência da Fifa, existe o projeto de ser construído um estacionamento onde hoje é localizada a favela do Metrô. Seguem pendentes as situações dos que não conseguiram os apartamentos e dos comerciantes.
A reportagem de AND também registrou as pichações e “colaços” feitos pelos moradores com frases de ordem de incentivo à luta e de denúncia dos crimes cometidos pela prefeitura. As inscrições “Eduardo Paes inimigo do povo!”, “Os prédios da Mangueira não são esmolas! São conquistas da nossa luta!” e “Abaixo as remoções de Paes, Cabral e Lula!” estão pintadas nos muros da entrada da comunidade.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Uma coisa sobre o rap, por Mumia Abu-Jamal

17 de dezembro de 1995

"`Você me lembra meu jipe
Quero te encerar, neném
Você me lembra minha conta bancária
Quero te gastar, neném´*

Esses versos são de `You Remind Me of Something´ (você me lembra alguma coisa), de R. Kelly. A canção é suave, com uma base funk e uma voz muito sexy. Mas por que ranjo os dentes toda vez que a escuto?

Não é por que, como diz meu filho, eu seja um velho incapaz de compreender os `cachorro loco´ da nova geração. Tendo dito isso, devo confessar que me sinto mais à vontade com o blues, o som suave de Anita Baker, ou até mesmo Brownstone, com cantoras como Sade e, sim, senhores e senhoras, Whitney. Também curto muito o rap por sua vitalidade, crueza, irreverência e criatividade. O rap é o autêntico legado de um povo com antigas tradições orais africanas, que abarcam várias gerações, desde os contistas chamados griots, que cantavam canções de louvor a seus reis, até os bluezeiros que transformavam sua dor em arte. É preciso entender que, para uma geração nascida nas águas frias do descontentamento nos EUA dos anos 70 e 80, durante períodos de negação, privações e uma emergente supremacia branca, uma canção de amor às vezes pode soar falsa e desafinada, diante da dura realidade da sobrevivência.

Quando as mães e pais dessa geração eram jovens, Curtis Mayfield cantava: `Somos vencedores! E nunca deixe qualquer um dizer que você não pode fazê-lo, porque essa mentalidade te bloqueia. Estamos indo pra frente!´; Earth, Wind and Fire entoavam com rara harmonia: `Mantenha tua cabeça voltada para o céu!´; Bob Marley and the Wailers retumbavam sobre uma forte linha de baixo: `Levante-se! De pé! Defenda os seus direitos!´**

Já a geração hip-hop formou sua consciência num tempo em que se ouviam as letras de Tina Turner, `O que amor tem a ver com isso?´ (What´s Love Got to Do With It?), ou uma mescla egocêntrica que glorificava o materialismo, como `Meus Adidas´ (My Adidas), do Run DMC, sobre um par de tênis, ou `Amigos´ (Friends), de Whodini, cujos versos falam sobre como não se pode confiar em ninguém.

Seus pais cresceram em meio à esperança, tomando consciência da libertação dos negros. Esses jovens cresceram em um ambiente de gcão-come-cão-ismoh, de recuo em relação às promessas feitas nos EUA, do Reaganismo e de um ressurgimento dos direitistas brancos. Neste sentido, a dureza do rap simplesmente reflete uma realidade mais dura, de vidas vividas em meio a promessas rompidas. Como poderia ser de outra maneira?

De fato, no fundo, no fundo, o rap é um negócio multibilionário, que penetra na cultura estadunidense e influi na maneira de pensar de milhões. É aquele corporativismo tão-americano que leva a bravura do rap ao esgoto do materialismo: uma mulher – um ser vivo – lembra a um homem uma coisa – um carro.

Para mim, isso é mais perverso que as tão criticadas menções a gcadelas e putash. É especialmente repreensível quando lembramos que, no século XIX, segundo a lei, os negros eram simplesmente propriedade, bens, coisas, como carroças possuídas pelos brancos. Me assombra que, três gerações depois, um homem negro seja capaz de cantar que uma mulher negra, seu par divino, seu próprio ser feminino, glembra seu jipeh.

Isso não é, nem poderia ser, uma denúncia contra o rap. As canções `Dear Mama´e `Keep your Head Up´, do falecido Tupac Shakur, são brilhantes exemplos de expressões artísticas da unidade do amor entre a própria família e seu povo. A obra desse jovem é criativa, comovente, amorosa, funky, revoltada e real, como uma boa parte do gênero. Como qualquer forma de arte nos EUA, também é um negócio, com todas as influências do mercado sobre a produção. Quanto mais conscientes seus artistas, mais consciente a arte.

Mantenha sua cabeça em pé***."

Do corredor da morte, aqui é Mumia Abu-Jamal

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

sábado, 12 de fevereiro de 2011

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A hipocrisia do Ocidente

Quando os árabes querem dignidade e respeito, quando gritam por seu próprio futuro que Obama assinalou em seu famoso – agora suponho que infame – discurso no Cairo, nos lhes faltamos com o respeito. Ao invés de dar as boas vindas às suas exigências democráticas, os tratamos como se fossem um desastre. Queremos que sejam como nós, desde que fiquem de lado. E assim, quando provam que querem ser como nós, mas não querem invadir a Europa, fazemos o que podemos para instalar outro general treinado nos EUA para que os governe. O artigo é de Robert Fisk.
Não há nada como uma revolução árabe para mostrar a hipocrisia de nossos amigos. Especialmente se essa revolução é marcada pela civilidade e pelo humanismo e é impulsionada por uma enérgica exigência para ter o tipo de democracia que desfrutamos na Europa e nos Estados Unidos. As indecisas tolices sussurradas por Obama e Clinton durante estas últimas duas semanas são apenas uma parte do problema. Da “estabilidade” à “tormenta perfeita” passamos ao presidencial “agora-significa-ontem” e “transição ordenada”, que se traduz assim: nada de violência enquanto o ex-general da força aérea Mubarak é levado a pastar para que o ex-general de inteligência Suleiman possa assumir a chefia do regime em nome dos EUA e de Israel.

A Fox News já disse a seus telespectadores nos EUA que a Irmandade Muçulmana – um dos grupos islâmicos mais “suaves” no Oriente Médio – está por trás dos valentes homens e mulheres que se animaram a resistir à polícia de segurança do Estado, enquanto a massa de “intelectuais” franceses silencia: as aspas são essenciais para nomes como Bernard-Henri Levy que se converteu, segundo o Le Monde, na “inteligência do silêncio”.

E todos sabemos a razão. Alain Finkelstein fala de sua “admiração” pelos democratas, mas também da necessidade de “vigilância” – e este é um ponto baixo em qualquer “filósofo” – “porque hoje todos sabemos sobretudo que não sabemos qual será o resultado”. Esta citação quase rumsfeldiana é dourada pelas próprias palavras ridículas de Lévy: “é essencial levar em conta a complexidade da situação”. Curiosamente, isso é exatamente o que os israelenses dizem quando algum ocidental insensato sugere que Israel deveria deixar de roubar terra árabe na Cisjordânia para suas colônias.

Na verdade, a própria reação de Tel Aviv aos importantes eventos no Egito – que este pode não ser o momento adequado para a democracia no Egito (permitindo assim manter o título de “a única democracia no Oriente Médio”) – tem sido tão inverossímil quanto contraproducente. Israel estará muito mais seguro rodeado por verdadeiras democracias do que por ditadores e reis autocráticos. Para seu enorme crédito, o historiador francês Daniel Lindenberg disse a verdade esta semana. “Devemos admitir a realidade: muitos intelectuais acreditam, no fundo, que o povo árabe é congenitamente atrasado”.

Não há nada de novo nisto. Aplica-se a nossos sentimentos recônditos sobre todo o mundo muçulmano. A chanceler Angela Merkel, da Alemanha, anuncia que o multiculturalismo não funciona, e um pretendente à família real da Baviera me disse, não faz muito tempo, que há turcos demais na Alemanha porque “não querem fazer parte da sociedade alemã”. No entanto, quando a Turquia – o mais perto da mistura perfeita de islamismo e democracia que se pode encontrar hoje no Oriente Médio – pede para ingressar na União Europeia e compartilhar nossa civilização ocidental, buscamos desesperadamente qualquer remédio, não importa quão racista seja, para evitar que isso aconteça.

Em outras palavras, queremos que sejam como nós, desde que fiquem de lado, a uma distância segura. E assim, quando provam que querem ser como nós, mas não querem invadir a Europa, fazemos o que podemos para instalar outro general treinado nos EUA para que os governe. Assim como Paul Wolfowitz reagiu à negativa do Parlamento turco em permitir que as tropas dos EUA invadissem o Iraque desde o Sul da Turquia perguntando se “os generais não tem nada a dizer sobre isso”, agora somos obrigados a ouvir o secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, destacar a “moderação” do exército egípcio, aparentemente não se dando conta de que o povo do Egito, que está propondo a democracia, é que deveria ser elogiado por sua moderação e não violência e não um monte de brigadeiros.

De modo que, quando os árabes querem dignidade e respeito, quando gritam por seu próprio futuro que Obama assinalou em seu famoso – agora suponho que infame – discurso no Cairo, nos lhes faltamos com o respeito. Ao invés de dar as boas vindas às suas exigências democráticas, os tratamos como se fossem um desastre.

(*) De The Independent da Inglaterra, especial para Páginal12. Tradução: Celita Doyhambéhère. Tradução para a Carta Maior: Katarina Peixoto.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Quando as empresas preferem os ditadores à democracia

O Egito foi o segundo grande receptor de ajuda externa dos Estados Unidos durante décadas, depois de Israel (sem contar os fundos gastos nas guerras e ocupações do Iraque e Afeganistão). O regime de Mubarak recebeu cerca de 2 bilhões de dólares ao ano desde que assumiu o poder, em sua imensa maioria para as forças armadas. Onde foi parar esse dinheiro? Em geral, foi para empresas estadunidenses. O dinheiro vai para o Egito e logo volta para pagar aviões F-16, tanques M-1, motores de aviões, mísseis, pistolas e latas de gás lacrimogêneo. O artigo é de Amy Goodman.
“As pessoas levavam um cartaz que dizia ‘Para: Estados Unidos. De: Povo egípcio. Deixem de apoiar Mubarak. Ele acabou!” – dizia o twitter de meu valente colega e produtor em chefe de Democracy Now! Sharif Abdel Kouddous, desde as ruas do Cairo.

Mais de dois milhões de pessoas se manifestaram naquele dia em todo o Egito: a maioria delas inundaram a praça Tahrir, no Cairo. Tahrir, que significa “libertação” em árabe, se converteu no epicentro do que parece ser uma revolução em grande medida pacífica, espontânea e sem líderes no país mais povoado do Oriente Médio. Este incrível levante que desafio o toque de recolher militar, foi conduzido pelos jovens, que constituem a maior parte dos 80 milhões de habitantes do país. Twitter, Facebook e as mensagens de texto de telefones celulares ajudaram esta nova geração a vincular-se e organizar-se, apesar de viver há três décadas em uma ditadura apoiada pelos Estados Unidos. 

Em resposta, o regime de Mubarak, com a ajuda de empresas estadunidenses e europeias, cortou o acesso à Internet e restringiu o serviço de telefonia celular, deixando o Egito em uma situação de obscuridade digital. C.W. Anderson comentou a respeito de se o que estava ocorrendo no Oriente Médio era uma espécie de revolução do Twitter: “não é a tecnologia, mas sim as pessoas que fazem a revolução”.

As pessoas nas ruas exigem democracia e autodeterminação. Sharif viajou para o Egito à noite, em um terreno incerto. As odiadas forças de segurança do Ministério do Interior e a polícia de camisas negras leais ao presidente Hosni Mubarak estavam reprimindo e matando gente, prendendo jornalistas, quebrando e confiscando câmeras. No sábado pela manhã, Sharif se dirigiu à praça Tahrir. Apesar do bloqueio da internet e das mensagens de texto, Sharif, talentoso jornalista e gênio da tecnologia, achou rapidamente uma maneira de publicar mensagens no twitter desde a praça Tahrir: “Que cena assombrosa: estão passando três tanques carregados de gente que grita “Fora Hosni Mubarak!”.

O Egito foi o segundo grande receptor de ajuda externa dos Estados Unidos durante décadas, depois de Israel (sem contar os fundos gastos nas guerras e ocupações do Iraque e Afeganistão). O regime de Mubarak recebeu cerca de 2 bilhões de dólares ao ano desde que assumiu o poder, em sua imensa maioria para as forças armadas. Onde foi parar esse dinheiro? Em geral, foi para empresas estadunidenses. Pedi a William Hartung, da New America Foundation, que explicasse isso:

“É uma forma de bem estar empresarial para empresas como Lockheed Martin e General Dynamics, porque o dinheiro vai para o Egito e logo volta para pagar aviões F-16, tanques M-1, motores de aviões, todo tipo de mísseis, pistolas, latas de gás lacrimogêneo de uma empresa chamada Combined Systems International, cujo nome figura nas latas achadas nas ruas do Egito”.

Hartung acaba de publicar um livro, “Os profetas da guerra: Lockheed Martin e a criação do complexo militar industrial”. Continuou dizendo:

“Lockheed Martin encabeçou acordos de 3,8 bilhões de dólares nestes últimos dez anos; a General Dynamics de 2,5 bilhões para tanques; a Boeing de 1,7 bilhões para mísseis e helicópteros e a Raytheon para todo tipo de mísseis para as forças armadas. Então, basicamente este é um elemento fundamental destinado a manter o regime, mas grande parte do dinheiro se recicla. Os contribuintes poderiam simplesmente dar o dinheiro diretamente para a Lockheed Martin ou a General Dynamics”.

De maneira similar, a “chave geral” para bloquear a Internet e os telefones celulares no Egito foi ativada com a colaboração de empresas. A empresa Vodafone (gigante mundial da telefonia celular, proprietária de 45% das ações da Verizon Wireless nos Estados Unidos), com sede na Inglaterra, tentou justificar-se em um comunicado de imprensa: “Estava claro que Vodafone não tinha opções legais nem práticas, mas sim que devia satisfazer as exigências das autoridades”.

Narus, uma subsidiária da Boeing Corporation, vendeu equipamentos ao Egito para permitir uma “inspeção profunda de pacote” (DPI, em sua sigla em inglês), segundo Tim Karr, do grupo de política de mídia Free Press. Karr disse que a tecnologia da Narus “permite às empresas egípcias de telecomunicações ver as mensagens de texto dos telefones celulares e identificar o tipo de vozes dissidentes que existem. Também fornece ferramentas tecnológicas para localizar essas mensagens geograficamente e rastreá-las”.

Mubarak prometeu não se apresentar como candidato à reeleição em setembro. Mas o povo do Egito exige que ele saia agora. Como durou 30 anos? Talvez isso possa ser explicado melhor quando consideramos uma advertência feita por um general do exército dos EUA há 50 anos, o presidente Dwight D. Eisenhower, que disse: “Devemos tratar de evitar que o complexo militar-industrial adquira influência injustificada, seja ela buscada ou não”. Esse complexo mortal não é um perigo apenas para a democracia em nível nacional, mas também quando apoia déspotas no estrangeiro.

Tradução: Katarina Peixoto

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Eventos destacam escravidão no meio urbano e impunidade

O enfrentamento ao trabalho escravo em áreas urbanas e a chaga da impunidade foram foco de atividades especiais nesta semana
04/02/2011

Maurício Hashizume

O enfrentamento ao trabalho escravo em áreas urbanas e a chaga da impunidade foram foco de atividades especiais nesta semana temática por conta das variadas comemorações inspiradas pelo Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (28 de janeiro).
Auditores fiscais do trabalho, integrantes de outros órgãos públicos, representantes do empresariado, de sindicatos e de organizações da sociedade civil estiveram presentes na audiência pública para tratar da exploração de mão de obra escrava no setor das confecções. Organizado no auditório da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP), o encontro abordou a situação de imigrantes sul-americanos que movem milhares de oficinas de costura não só na metrópole, mas também em diversos outros pontos espalhados pelo estado mais rico do país. Na busca de alternativas à situação vulnerável em que vivem em seus países, vítimas estrangeiras são muitas vezes atraídas por esquemas criminosos que combinam tráfico de pessoas, trabalho forçado e outros delitos.
Entre os passos dados no sentido de combater esse tipo de violação dos direitos humanos fundamentais, os responsáveis pela fiscalização trabalhista destacaram especialmente os esforços para a responsabilização dos reais beneficiários da exploração do trabalho em condições análogas à escravidão de imigrantes, no bojo do Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo - Cadeia Produtiva das Confecções.
Antes dessa investida nas cadeias produtivas, prevalecia uma tendência de enquadramento apenas dos donos de oficinas que atuam na ponta do processo.
Durante a audiência, o auditor fiscal Luis Alexandre Faria destacou a série de fiscalizações realizadas ao longo de 2010: desde o caso da oficina com imigrantes submetidos à escravidão que produzia peças para a rede varejista Marisa (e que também confecicionara anteriormente para a C&A), ocorrida em março, até a grande operação de 11 de agosto que culminou no flagrante de trabalho escravo na cadeia de suprimento da marca de moda jovem 775 e também na costura dos coletes utilizados pelos recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em dezembro do ano passado, o mesmo grupo da SRTE/SP atendeu denúncia de trabalho escravo urbano referente a outro setor econômico e libertou ainda dezenas de trabalhadores migrantes vindos do Nordeste que faziam a manutenção da linha férrea que liga Santos (SP) a Mairinque (SP), sob concessão da companhia América Latina Logística (ALL). Os empregados estavam alojados em precariedade extrema dentro de contêineres sem estrutura adequada em trecho isolado na Serra do Mar.
Uma das principais preocupações ao longo das fiscalizações, de acordo com Luís Alexandre, diz respeito à proteção das trabalhadoras e dos trabalhadores alcançados. A orientação adotada é a de evitar que as vítimas, que já tiveram de enfrentar um quadro de desumanidade, sejam punidas pela segunda vez por conta da situação migratória em que se encontram. O objetivo das ações, portanto, é garantir os direitos de cidadãos naturais de países como a Bolívia e o Paraguai - com os quais o Brasil mantém acordo de livre residência - conferindo a emissão da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) e corroborando para a regularização.
A equipe da SRTE/SP lançou a todos os participantes a ousada meta de trabalhar em conjunto para eliminar a escravidão no meio urbano até a Copa do Mundo de futebol de 2014, que terá o Brasil como anfitrião e a capital paulista como uma das cidades-sede.
A coordenação do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano está a cargo da auditora fiscal do trabalho Giuliana Cassiano. Em explanação sobre o tema, ela lembrou que, além da legislação doméstica e das convenções e tratados internacionais relativas ao trabalho escravo, as operações de libertação de estrangeiros devem respeitar o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, mais conhecido como Protocolo de Palermo.
Giuliana sublinhou aspectos que caracterizam o trabalho análogo à escravidão - como o trabalho forçado, a restrição da liberdade, a jornada exaustiva, o trabalho degradante, a servidão por dívida e a retenção de documentos - e defendeu uma fiscalização cada vez mais integrada, que possa envolver diversos segmentos do Estado.
"Como a Defensoria Pública da União (DPU) defende o acesso à Justiça, não poderia ficar fora do combate ao trabalho escravo", comentou André Carneiro Leão, membro da entidade. A DPU em São Paulo esteve como parceira da SRTE/SP no caso Marisa e em mais uma operação no setor de confecções. Para ele, a intervenção da DPU não tem a intenção de apenas "judicializar" as ocorrências, mas de somar esforços para eliminar o problema.
Segundo números do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), mais de 39 mil pessoas foram libertadas em mais de 1 mil operações, no período de 1995 até 2010. As fiscalizações de repressão à escravidão vasculharam cerca de 2,8 mil fazendas e estabelecimentos. Ao todo, foram emitidas 21 mil guias de Seguro Desemprego do Trabalhador Resgatado e a reincidência de trabalhadores que são resgatados mais de uma vez é de 2%.
Radicada no Brasil, a advogada boliviana Ruth Camacho enfatizou a relevância da educação e da orientação necessárias para que pequenos empreendedores fragmentados e fragilizados na ponta da cadeia produtiva sejam plenamente informados acerca dos benefícios da formalização de seus negócios e da adoção dos padrões e normas trabalhistas vigentes. O testemunho de Ruth, que presta atendimento aos estrangeiros no Serviço Pastoral do Migrante (SPM), colocou em evidência a forma como muitos imigrantes são levados a pensar. Enquanto o caminho da legalidade é caro, complicado e desvantajoso, a clandestinidade tende a prometer o oposto: baixo custo, simplicidade e retorno garantido.
A solicitação de maior cuidado e investimento nas mediações entre essas pessoas que estão sujeitas à superexploração nas oficinas de costura e órgãos públicos como a Polícia Federal (PF) coube ao padre Mario Geremia, do CPM. Já Paulo Ylles, do Centro de Apoio ao Migrante (Cami), realçou que o Brasil ainda não ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias - aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1990.
Paulo também citou a indefinição acerca dos casos omissos relacionados à abertura de anistia aos estrangeiros em situação ilegal, ocorrido em 2009. As entidades que atendem imigrantes são unânimes quanto à preocupação com relação à segunda fase do processo de anistia, que deve se encerrará no final deste ano. A PF tem exigido documentos e comprovações adicionais e complexas para a conversão de vistos temporários em permanentes.
O bloco dos empresários têxteis saudou as iniciativas conjuntas com o poder público e a sociedade civil com vistas ao combate ao trabalho escravo contemporâneo. Na perspectiva de Ronald Massijah, do Sindicato das Indústrias do Vestuário do Estado de São Paulo (SindiVestuário), o alto índice geral de informalidade pede políticas públicas de maior alcance (principalmente no campo econômico) que possam incentivar a massificação de boas práticas trabalhistas sem direcionamento para um ou outro setor.
A iniciativa privada tem a sua disposição diversas ferramentas para minar a continuidade da escravidão no país. Além do compromisso específico da cadeia produtiva de confecção idealizado e mantido pela SRTE/SP, companhias e associações podem fazer parte do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que completou cinco anos em 2010 e visa isolar economicamente os empregadores que exploraram mão de obra escrava. Além disso, o suporte convicto e efetivo de industriais do setor urbano para a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001 - que confisca as terras de escravagistas - seria crucial para destravar a matéria, que aguarda votação do plenário na Câmara dos Deputados desde agosto de 2004.

Incentivo e protesto
No dia 28 de janeiro daquele mesmo ano, três auditores fiscais (Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva) e um motorista (Ailton Pereira de Oliveira) que estavam a serviço do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) foram assassinados numa emboscada durante fiscalização de rotina na área rural do município de Unaí (MG).
Para José Roberto de Melo, que atua à frente da SRTE-SP, o episódio que ficou conhecido como "Chacina de Unaí", apesar da tristeza pelas trágicas mortes, não foi capaz de impor medo aos auditores fiscais do trabalho. A violenta e covarde ofensiva contra os servidores, acrescentou José Roberto, reforçou a importância do trabalho desenvolvido e a indignação foi convertida em incentivo para a continuidade das inspeções.
Uma salva de palmas, convocada por José Roberto na audiência, foi dada em homenagem aos funcionários públicos assassinados da "Chacina de Unaí". As vítimas fatais de acidentes de trabalho, que continuam sendo contabilizadas em diversos segmentos ano após ano, também foram lembradas. Os cerca de 500 auditores fiscais que atuam no Estado de São Paulo são encarregados de para fiscalizar atividades que respondem por 42% da economia nacional.
Mais de 200 pessoas engrossaram ato público que cobrou o julgamento dos acusados pela "Chacina de Unaí", organizado pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) e pela Associação dos Auditores Fiscais do Trabalho de Minas Gerais (AAFIT/MG), em Belo Horizonte (MG).
Com faixas, cartazes e camisetas denunciando os sete anos de impunidade, a manifestação em frente ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) contou com a participação de duas viúvas dos auditores que perderam a vida: Helba Soares, viúva de Nelson; e Genir Lage, viúva de João Batista.
Depois da derrubada de dois últimos recursos que tramitavam no Superior Tribunal de Justiça, o processo principal da "Chacina de Unaí" está pronto para voltar ao TRF-1 em Minas Gerais para que seja submetido a júri popular. São nove os acusados. Cinco deles, que teriam participado da execução do crime, estão presos. Indiciados como mandantes, os outros quatro permanecem em liberdade. Apenas o réu Antério Mânica teve seu processo desmembrado dos demais por ser prefeito de Unaí (MG) e ter direito a foro especial. Cinco mil balões brancos, que simbolizam a esperança de que o julgamento seja marcado com celeridade, foram soltos no ato.